sábado, 15 de abril de 2017

ANALITICIDADE: KANT E FREGE




1. ANALITICIDADE: KANT

Para Kant, quanto a origem, o conhecimento humano se distingue em a priori, conhecimento de razão, e a posteriori, conhecimento de fato ou de experiência. A distinção a priori e a posteriori, que é sobre dois diferentes modos de conhecer, é epistemológica. Kant distingue ainda como se decide a verdade de um juízo. Se o modo de ligação entre o sujeito e o predicado se encontra no sujeito, como em "todos os corpos são extensos", o juízo é analítico. Ao passo que se o predicado se encontra fora do sujeito, caso de "todos os corpos são pesados", o juízo é sintético. A distinção analítico e sintético é semântica, uma vez que remete à verdade de um juízo ou sentença.

A apresentação oficial da distinção analítico e sintético é exposta na introdução da crítica da razão pura. Nela, Kant afirma que os juízos analíticos são juízos em que “o predicado B pertence ao sujeito A como algo que está contido (implicitamente) nesse conceito A” (A 6/B 10). [1] De maneira equivalente, é descrito que em tais juízos “a ligação do sujeito com o predicado é pensada por identidade” (A 7/B 10). Por sua vez, se o conceito “B está totalmente fora do conceito A, embora em ligação com ele” (A 6/B 10), o juízo é sintético. A ligação entre o sujeito e o predicado nos juízos sintéticos “é pensada sem identidade” (A 7/B 10). Outra explicação dada na introdução da primeira crítica e encontrada nos prolegômenos, §2, é que os juízos analíticos são meramente explicativos, enquanto os juízos sintéticos são extensivos. De acordo com essa explicação, no juízo analítico “o predicado nada acrescenta ao conceito do sujeito e apenas pela análise o decompõe nos conceitos parciais, que já estavam pensados (embora confusamente)” (A 7/B 11). Por outro lado, os juízos sintéticos “acrescentam ao conceito sujeito um predicado que nele não estava pensado e dele não podia ser extraído por qualquer decomposição” (A 7/B 11).

É ainda característica fundamental dos juízos analíticos que o princípio de não-contradição rege esses juízos. Entretanto, esta característica está implícita na introdução da primeira crítica, Kant a expõe explicitamente apenas na segunda seção do segundo livro da analítica transcendental (A 151/B 191). O mesmo também é destacado no §2 dos prolegômenos. [2] Para Kant, o princípio de não-contradição é uma condição universal de todos os juízos em geral, não só dos juízos analíticos. No entanto, mesmo que obedeça ao princípio de não-contradição, um juízo que não seja analítico ainda pode ser falso ou infundado. Ao passo que a verdade de juízos analíticos, afirmativos ou negativos, se encontra somente com o apoio do princípio de não-contradição ou de leis elementares da lógica.   

Na lógica de Jäsche, §36, a distinção analítico e sintético é feita em termos do contraste entre extensão formal e extensão material do conhecimento. Os juízos analíticos aumentam o conhecimento formal. Ao explicar ou clarificar o que está implícito em um conceito, eles proporcionam uma extensão formal ao nosso conhecimento. Assim, por meios puramente lógicos se descobre implicações das quais não se conhecia e que já se encontravam contidas nos conceitos dados. Na lógica, Kant novamente toma como exemplo de juízo analítico "todos os corpos são extensos" e o representa esquematicamente com a forma geral: a “todo x ao qual convém o conceito de corpo (a + b), convém também o de extensão (b)”. [3] O esquema mostra que nos juízos analíticos o sujeito do juízo ou o objeto x se relaciona com o predicado b por conta do predicado estar contido no conceito sujeito (a + b) como uma nota. Como comenta Allison, [4] os juízos analíticos se referem a um objeto, têm um sujeito lógico, e como mostra o esquema kantiano também podem ter um sujeito real. Entretanto, como a verdade ou falsidade desse juízo pode ser determinada pela mera análise do conceito do sujeito, a referência ao objeto x é inútil. Por isso, juízos analíticos são a priori. Por fim, no §37 da lógica de Jäsche, Kant observa que proposições tautológicas, como todo homem é homem, são casos de juízos analíticos em que há a identidade expressa ou explícita de conceitos. A identidade de conceitos também pode ser implícita, nesse caso a proposição analítica clarifica o predicado não desenvolvido no conceito de sujeito.  

Se por um lado, os juízos analíticos aumentam o nosso conhecimento formal, por outro lado, o juízo sintético aumenta nosso conhecimento material. Na lógica, o exemplo de juízo sintético é todos os corpos têm atração que é representado esquematicamente da seguinte forma: a “todo x ao qual convém o conceito de corpo (a + b) convém também o de atração c”. [5] O juízo sintético afirma a conexão, pensada através do conceito (a + b), entre o sujeito x e o predicado c. A partir do esquema se tem que nos juízos sintéticos o sujeito x, conhecido a partir do conceito (a + b), também possui a propriedade c. Nesse juízo, o predicado c está conectado com o conceito sujeito (a + b) por meio da referência de ambos ao objeto x. O juízo sintético aumenta o nosso conhecimento sobre x, nosso conhecimento material, ao adicionar uma propriedade ou determinação que não estava contida no conceito sujeito (a + b). Como Kant explica na lógica §36, os predicados de juízos sintéticos são determinações; enquanto juízos analíticos contêm apenas predicados lógicos. Convém, então, esclarecer o sentido da afirmação da crítica da razão pura de que “toda proposição de existência é sintética” (A598/B626), uma vez que para Kant existência não é um predicado real. O caso é que juízos existenciais são sintéticos não porque seu predicado lógico, existência, também é um predicado real ou determinação, mas por conta de seu sujeito ser um sujeito lógico e o juízo afirmar a existência de um objeto relacionado ao sujeito.


2. ANALITICIDADE: FREGE

Nos primeiros parágrafos de os fundamentos da aritmética (Grundlagen), Frege investiga se as verdades da aritmética são analíticas ou sintéticas, conhecidas a priori ou a posteriori. Como é afirmado no §3 de os fundamentos da aritmética, as “questões da natureza a priori ou a posteriori, sintética ou analítica das verdades aritméticas esperam encontrar aqui sua resposta.” [6] Para saber se a verdade de uma proposição é analítica ou sintética em sentido fregeano é preciso encontrar uma demonstração ou prova e retroceder às suas verdades primitivas. A verdade é analítica se no processo se encontram somente leis lógicas gerais e definições. Ao passo que a verdade é sintética se a prova não depende somente de leis lógicas gerais, mas envolve alguma ciência particular.

Ambas as distinções kantianas em sentido fregeano não remetem ao “conteúdo do juízo mas à justificação da emissão do juízo.” [7] Frege chama a atenção que é costume obter o conteúdo de uma proposição e só posteriormente chegar à sua demonstração. Desse modo, é necessário distinguir o conteúdo do juízo da justificação de sua asserção. Em sentido fregeano, na consideração de um juízo quanto a essas distinções não entram questões psicológicas, fisiológicas ou físicas de como se forma o seu conteúdo na consciência, nem a crença de como se tomou um juízo como verdadeiro. Falar de conhecimento, a priori ou a posteriori, remete à sua justificação. Assim, conhecer alguma coisa a priori é uma forma de conhecer. E para Frege, só se conhece o que é verdadeiro. Por isso, um “erro a priori é neste caso algo tão absurdo quanto, digamos, um conceito azul.” [8] Frege não nega aqui, como chama a atenção Kenny, [9] que se possa conhecer certas proposições como falsas, proposições tais como 7 + 5 = 3. O caso é que o conhecimento a priori de que uma proposição p qualquer é falsa é tratado por Frege como o conhecimento de que a negação dessa proposição p é verdadeira.  Em os fundamentos da aritmética, Frege afirma o seguinte sobre essas distinções:

Importa então encontrar sua demonstração e nela remontar até as verdades primitivas. Se neste caminho esbarra-se apenas em leis lógicas gerais e definições, tem-se uma verdade analítica, pressupondo-se que sejam também levadas em conta as proposições sobre as quais se assenta a admissibilidade de uma definição. Se não é possível, porém, conduzir a demonstração sem lançar mão de verdades que não são de natureza lógica geral, mas que remetem a um domínio científico particular, a proposição é sintética. Para que uma verdade seja a posteriori requer-se que sua demonstração não se possa manter sem apelo a questões de fato, isto é, a verdades indemonstráveis e sem generalidade, implicando enunciados acerca de objetos determinados. Se, pelo contrário, é possível conduzir a demonstração apenas a partir de leis gerais que não admitem nem exigem demonstração, a verdade é a priori. [10]

Essas distinções, tal como as faz Frege, envolvem graus de generalidade. As verdades sintéticas a posteriori são verdades gerais que podem ser estabelecidas a partir dos sentidos e nos falam apenas sobre o mundo físico ou espaciotemporal. Por outro lado, as verdades sintéticas a priori da geometria euclidiana “governam o domínio do intuível espacial, seja real ou produto da imaginação.” [11] Enquanto os princípios do mundo físico podem ser violados nas invenções mais extravagantes das lendas e dos poetas em que animais falam e pedras se tornam homens, as leis da geometria não. Mesmo as histórias mais fantásticas estão presas aos axiomas da geometria euclidiana. As verdades sintéticas a priori têm um âmbito maior e mais geral que os princípios sintéticos a posteriori do mundo físico. No entanto, as leis da geometria euclidiana não se mantêm em todo lugar. Assim, nas geometrias não euclidianas, são extraídos axiomas da negação de algum axioma da geometria euclidiana. Além dessas leis, existem leis mais gerais que estão em todo lugar, tudo o que é pensável está em seu domínio, este é o caso das leis lógicas. As verdades a priori são verdades em que a sua demonstração depende de leis gerais. E as leis gerais a partir das quais as verdades analíticas são demonstráveis são leis lógicas gerais. As leis lógicas não se restringem a ciências particulares, são universalmente aplicáveis. Frege se pergunta qual o status das leis da aritmética. Elas são sintéticas a priori como a geometria euclidiana, posição defendida por Kant, ou são analíticas? 

Frege concorda com Kant que as verdades da geometria euclidiana são sintéticas e conhecidas a priori. No entanto, discorda que as verdades da aritmética sejam sintéticas. Kant considerava que fórmulas aritméticas eram sintéticas e conhecidas a priori. Assim, ele mantém que em proposições aritméticas como 7 + 5 = 12 é necessário ir além dos conceitos de sete e de cinco para obter o número doze e procurar auxílio na intuição. Ao se tomar o número sete para realizar a soma, o número cinco é intuído, isso pode ser feito com a ajuda dos dedos da mão ou de cinco pontos, com o acréscimo de cada unidade das quais o número cinco é obtido se chega ao número doze. Kant conclui que as proposições da aritmética são sintéticas, uma vez que mantém que a soma não é obtida pela mera análise de conceitos, mas requer o apoio da intuição. John Stuart Mill, por sua vez, concordou com Kant de que as verdades da aritmética eram sintéticas; entretanto, defendeu que eram a posteriori. Frege rejeita essas posições como insustentáveis. Para ele, as verdades da aritmética não dependem de intuições puras ou sensíveis, são analíticas.    

As verdades da aritmética, para Frege, são mais amplas que as da geometria euclidiana que são espaciais, elas se aplicam a tudo o que pode ser contado. Assim, os fundamentos da aritmética são mais profundos que o conhecimento empírico e que os fundamentos da geometria. “As verdades aritméticas governam o domínio do enumerável. Este é o mais inclusivo; pois não lhe pertence apenas o efetivamente real, não apenas o intuível, mas todo o pensável.” [12] As provas aritméticas são mais gerais que as da geometria, posto que as proposições aritméticas não são restritas à realidade espacial, mas são de um domínio irrestrito. Elas se aplicam a tudo o que pode ser pensado. E tudo o que pode ser pensado, objetos espaciais ou não, pode ser contado. Frege se afasta de Kant em relação às fontes do nosso conhecimento. Kant manteve que não se pode ter conhecimento substantivo somente com a razão, é necessária a intuição pura ou a experiência sensível. Entretanto, Frege compreende a razão nela mesma, sem a necessidade de apelar à intuição pura ou sensível, como uma fonte de conhecimento substantivo. A razão é a fonte das verdades aritméticas que podem ser demonstradas por leis lógicas. Portanto, a aritmética não é sintética a priori, como Kant acreditava, ela é analítica.

REFERÊNCIAS:

Allison, Henry E. El idealismo trascendental de Kant: una interpretación y defensa. Barcelona: Editorial Anthropos, 1992.

DICKER, Georges. Kant’s Theory of Knowledge: An Analytical Introduction. Nova Iorque: Oxford University Press, 2004.

Frege, Gotllob. Os fundamentos da aritmética: uma investigação lógico-matemática sobre o conceito de número. In: Peirce e Frege: Col. Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1974.

HÖFFE, Otfried. Immanuel Kant.  São Paulo: Martins Fontes, 2005.

KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. 6ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008.
_____. Manual dos cursos de lógica geral. 2ª ed. (bilíngue) São Paulo: Editora da Unicamp, 2003.
_____. Prolegómenos a toda a metafísica futura que queira apresentar-se como ciência. Lisboa: Edições 70, 1988.

KEENY, Anthony. Introducción a Frege. Madrid: Ediciones Cátedra, 1995.

WEINER, Joan. Frege explained (from Arithmetic to Analytic Philosophy). Chicago: Open Court, 2004. 




[1] Todas as citações da “crítica da razão pura” nesse texto são da tradução portuguesa da editora Calouste (KANT: 2005). Como de costume, a citação vem com a paginação da edição A (1781) da crítica e da edição B (1788).
[2] No texto dos “prolegômenos (§2), KANT: (1988, p. 25) afirma o seguinte: “Todos os juízos analíticos se baseiam inteiramente no princípio de contradição e são, por natureza, conhecimentos a priori, quer os conceitos que lhes servem de matéria sejam ou não empíricos. Pois, assim como o predicado de um juízo analítico afirmativo está já pensado anteriormente no conceito do sujeito, não pode ser negado por ele sem contradição, assim também o seu contrário, num juízo analítico, mas negativo, será negado necessariamente pelo sujeito e, sem dúvida, em consequência do princípio de contradição. Assim acontece com as proposições: todo corpo é extenso e nenhum corpo é inextenso (simples) por natureza.”.
[3] KANT: 2003, p. 221. “Manual dos cursos de lógica geral”, §36, Ak. 111.
[4] ALLISON: 1992, p. 133.
[5]Manual dos cursos de lógica geral”, §36, Ak. 111.
[6]Os fundamentos da aritmética – Uma investigação lógico-matemática sobre o conceito de número”. FREGE: 1974, p. 210.
[7] Idem.
[8] Ibidem.
[9] KENNY: 1995, p. 79. Ver a nota 1.
[10] FREGE: Op. cit., pp. 210-11.
[11] Idem, §14, p. 220.
[12] Ibidem, loc. Cit., § 14. 

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